17 de mai. de 2010

Ah, se tivessem me avisado antes!


Desperto do sono agitado, com sonhos ruins. Minha figura no espelho é deprimente. Os dois dedos marcados no lado direito do rosto me dão um ar patético. O cabelo sujo denuncia a falta de cuidado com meu próprio corpo.

Visto uma roupa que foi guardada suja, e calço o velho tênis branco encardido. A meia estava suja também. Na bolsa, a carteira com pouco dinheiro, quase nada. O celular desligado. O bloco de anotações e a caneta, preciso anotar as frases que me surgem repentinamente. A edição de bolso de Dom Casmurro, prometi que o leria quantas vezes fosse necessário, até que me convencesse da inocência de Capitu. Já estou na décima sexta leitura.

Pronta para ir ao lugar de sempre, para encontrar as mesmas pessoas, pego as chaves e saio.

Antes de tomar o ônibus, ouço um trovão.

A chuva cai forte. Deixo-me molhar.

Ali, parada, encharcada, percebo que a chuva não foi suficiente, continuo suja.

4 de jul. de 2009

"E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra."

Fragmento do conto Felicidade Clandestina de Clarice Lispector.
Como todos os demais da autora, esse conto em mim despertou certa inquietude. É como se ali, naquele pequeno parágrafo, Clarice tenha sintetizado tudo aquilo que sempre senti mas nunca expressei, ninguém me entenderia mesmo...
Há quem sofra por sofrer muito, há quem sofra por se sentir culpado por não sofrer, há quem sofra para não fazer sofrer aquele o fez sofrer, e há quem simplesmente não sofra.

18 de jun. de 2009

"Manuelzão, como os dois campeiros escutava, não conseguia ser mais forte do que aquelas novidades. - "Estória!" - ele disse, então. Pois, minhamente: o mundo era grande. Mas tudo era muito maior quando a gente ouvia contada, a narração de outros, de volta de viagens. Muito maior do que quando a gente mesmo viajava, serra-abaixo-serra-acima, quando a maior parte do que acontecia era cansativo dos tristonhos, tudo trabalho empatoso, a gente era sofrendo e tendo de aturar, que nem um boi, daqueles tangidos no acerto escravo de todos, sem soberania de sossego. A vida não larga, mas a vida não farta. [...] Ele, Manuel J. Roíz, vivera lidando com a continuação, desde o simples de menino. Varara nas águas. Boiadero em cima da sela, dando altas despedidas, sabendo saudade em beira de fôgo, frias noites, nos ranchos. Até para sofrer, a gente carece de quietação. Para sofrer com capricho, acondicionado, no campo de se rever. Viageiro vai adiando. Só o medo da miséria do uso - um medo constante, acordado e dormindo, anoitecendo, amanhecendo."

Aí está um trecho de Manuelzão, do Mestre Guimarães Rosa.

Guimarães... Incrível, um dos únicos que me enche os olhos d'água, que me arrepia a cada página, que me faz ter vontade de viver para ler. Desaperta meu coração, e me faz apaixonar por esse sertão, esse céu, esse sol que, de tão quente, desespera. Apaixonada pelos Manuelzões e Miguilins.

6 de mai. de 2009

e quando caio em mim, estou a rir, solitária, do mundo e dos desprezíveis seres que insistem em habitá-lo.

14 de mar. de 2009

da solidão ou talvez.

Estava só. Talvez nunca tivesse ficado só. Talvez nem estivesse ali. Talvez aquilo pudesse não ter acontecido, aquelas palavras pudessem não ter sido ditas. Talvez pudesse ter deixado passar, de novo... Talvez fosse o amor aquilo mesmo. Talvez não. Talvez tivesse sido feliz. Talvez nem saiba o que é felicidade. Talvez ela nem exista mesmo. Talvez viver não compensasse todas as dores, todas as dúvidas, toda a solidão. Talvez não voltasse àquele lugar, àquelas pessoas, àqueles sorrisos.
E começava a gostar daquela dor, daquela angústia, daquele silêncio. Habituou-se. Estava só.

18 de fev. de 2009

JOÃO E MARIA

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três.
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock para as matinês.
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz.
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país.
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido.
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido.
Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim.
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim.


Música de Sivuca, letra composta por Chico Buarque em 197.

"João e Maria" foi a primeira música de Chico que me encantou, que me faz amar suas canções e criar o hábito de ouvi-las. O caráter infantil da canção me fez sentir profundamente familiarizada com Chico. Hoje, quando a ouço, sinto uma imensa saudade de minha infância, dos quintais, dos heróis e princesas, que não tiveram um final feliz.
Aliás, ouçam Chico Buarque Ao Vivo em Paris.